[Resenha] Noturna e outros poemas: o lirismo sombrio de Cláudio Duffrayer

domingo, 26 de janeiro de 2014

Sou, com efeito, um sonhador de palavras, um sonhador de palavras escritas. Acredito estar lendo. Uma palavra me interrompe. Abandono a página. As sílabas da palavra começam a se agitar. Acentos tônicos começam a inverter-se. (...) As palavras assumem então outros significados, como se tivessem o direito de ser jovens. (...) A palavra vive, sílaba por sílaba, sob o risco de devaneios internos.
A poética do devaneio, p. 17.

.Gaston Bachelard, em trecho transcrito acima de A poética do devaneio (2009), convida-nos a refletir sobre a palavra como elemento fundamental na instituição de significados diversos em um texto. “A poesia é um dos destinos da palavra.”. Pode-se dizer que a imagem poética abre um porvir da linguagem. A palavra não se limita a exprimir ideias ou sensações, ela sonha, ela conduz a um mundo imaginado, ela ajuda-nos a escapar ao tempo. Através da leitura, temos a oportunidade de vivenciarmos esse mundo de palavras que nos fascina e nos instiga. Esse foi o sentimento que despertou em mim a obra Noturna e outros poemas (2013), de Cláudio Duffrayer.

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[caption id="" align="aligncenter" width="250"]noturna-e-outros-poemas Noturna e outros poemas (2013). Publicado pela Editora Multifoco.[/caption]

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Provocam-me tuas escamas rubro-negras ao deslizar sobre minha pele, atiçadas pelas minhas mãos habilidosas, atiçadas pelos meus dedos delicados que te cortejam enquanto dormem as hienas.
(...)
Meus dedos não tremem, não dessa vez, mas seguem em derradeira obediência enquanto afastam-se os gigantes e me entrego como sempre, pois não será deles o festim.
Teus lábios são frios, mas teu beijo me aquece quando fincas em mim tua presa ungida e cálida, e as hienas despertam, pois são hienas malhadas e nunca se fingem de mortas.
(...)
Elas gargalham histéricas, pois sabem que logo serão satisfeitas, já tão próximas, velozes como o pôr de cada uma das sombras que trago comigo; são sombras puras e se fingem de mortas.
(Cobra-Coral, p. 11)

.A poesia de Cláudio Duffrayer é enigmática – essencial para nossa curiosidade inerente – e melancólica, sombria, sugestiva – porta para um universo misterioso e arrebatador. O poeta, natural do Rio de Janeiro, revelou em sua escrita um imaginário poético pertencente ao universo da alma, dos sonhos e da angústia. Os 22 poemas que compõem o livro fazem-nos lembrar a atmosfera mística e sobrenatural evocada pelos poetas simbolistas e pelos escritores da literatura fantástica do século XIX.
Acordo de um sono profundo, acordo de um sono sem sonhos com meus pulmões em chamas.
Galopa a noite com seus cascos sem ferraduras quando não consigo respirar.
Galopa, galopa, galopa.
(Barricadas, p. 50)

O gosto pelo sobrenatural já é evidenciado pelo título da obra, remetendo-nos à noite e sua obscuridade. A noite, geralmente considerada o período em que as almas estão perambulando pelos mais diversos caminhos escuros, pode ser vista também como um símbolo de ponto de partida para o sonho, para a emoção poética, para o despertar do pensamento. E, sendo o espaço privilegiado do sonho, a noite oferece um mundo onírico favorável à transcendência.


Na poética de Cláudio Duffrayer, os mais altos momentos de lirismo são aqueles em que o poeta canta a noite como imagem do inconsciente . Nesse sentido, a noite é o local onde se misturam pesadelos e monstros, as ideias negras:




A noite sangra, perfurada pelo colear das lágrimas, e derrama sobre solo sacro, em ondas violáceas, aquela que é sua matéria mais íntima e nobre, fazendo-o verter uma escuridão ainda mais pura e densa, trazida à tona qual fugidia lembrança.
A noite sangra, ferida brutalmente, e em ecoantes estertores clama por seus mistérios, refugiados em algum lugar no santuário sempre-vivo, perdidos além das oscilantes margens do negrume que o encobre.
(...)
Os anjos sangram, perfurados pelos raios, perguntando-se com amargo rancor por quê são punidos, ao que o mercúrio degenera-se, não mais intocado pelo tempo, mas esmagado pelo peso das eras.
Os anjos choram, engolfados pelas ondas, refugiando-se no solo, profanando-o com suas lágrimas, uma vez mais famintos, uma vez mais sedentos, ainda e sempre alquebrados, e no único vestígio de sombra poupado pela aurora executora, somente libélulas, vaga-lumes e mariposas testemunham seu sofrer.
(Os Anjos no Escuro, p. 22 – 25)



.A noite, que não só estabelece um clima soturno nos poemas, mas pode ser também o período do vir a ser, das transformações. O leitor pode sentir um impulso para o desespero e para a reflexão. Encontramos ainda outros elementos que criam uma identidade poética nos textos lidos. O labirinto, entrecruzamento de caminhos dos quais alguns não têm saída, constituindo, assim, impasses. O labirinto conduz o homem ao interior de si mesmo, às profundezas do ser humano, ao inconsciente:
As paredes nos afastam com a cumplicidade da tua frieza, formando o labirinto que percorro desde sempre; os corredores que me assombram junto aos meus tantos escuros.
Não sei se esse labirinto foi construído por minhas próprias mãos sem que eu percebesse, com meu rancor, com meu medo, a partir das sombras que me habitam há tanto tempo.
(...)
Sei que as paredes são translúcidas e ardilosas; escondem o que tenho de mais precioso em meu íntimo, tornando ainda mais hediondo o que tenho de grotesco.
(Labirinto, p. 35)

.A esfinge, figura enigmática presente na literatura grega, também compõe o universo imaginário do poeta, lembrando a angústia exaltada no lirismo romântico. A esfinge é o inelutável.
Antes que eu implore ela me penetra, sequiosa, mais fundo que a lâmina, mais recôndita que o nada, atravessando todas as camadas como se me partisse ao meio, tomando-me de assalto em uma inundação branca, vermelha e azul.
(...)
Assim ela me ceifa, piedosa, rapinando-me o último sopro, levando-me em suas entranhas, levando-me em seu ventre; assim ela me acolhe, embalsama e desfaz.
(...)
(A Esfinge, p. 15)

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A Esfinge bate suas asas.
Forma-se um furacão ao meu redor.
Ao meio-dia começa a noite.
(...)
(Fogo Brando, p. 37)

.O conjunto de elementos escolhidos por Duffrayer, remete-nos ao sentimento de inadequação ao seu mundo, à expiação, ao desespero, à morte. É o ser humano em busca de sua identidade, por isso o eterno conflito, a dor e, em alguns momentos, as chamas e as cinzas.

O que me possui é um fogo negro, vicioso, determinando cada passo, cada movimento, reduzindo-me a um fantoche desengonçado e pestilento.
O que me possui é um fogo negro, perpétuo, que me extravia e macula, transformando-me em um espectro a sofrer para sempre o horror da segunda morte.
(Fogo Negro, p. 29)



Tendo em vista ser a obra de estreia de Duffrayer, temos a certeza de que Noturna e outros poemas abre a possibilidade de novos caminhos a serem percorridos. Tenho a certeza de que essa é uma das inúmeras leituras possíveis dessa obra tão densa e tão inquietante. As questões levantadas através da leitura dessa obra, para mim, foram essenciais para refletir sobre a essência da poesia, o estado de alma e a alma que se entrega com o universo poético do autor.

Para Gaston Bachelard, o poeta revela o ser das coisas e também se revela, ao deixar uma visão da vida perpetrada em seus escritos, ou seja, o poeta é o sujeito capaz de suscitar, através de imagens poéticas, outra atmosfera, originando uma nova linguagem que repercutirá no leitor. Noturna e outros poemas aproxima-se do devaneio noturno de Bachelard: é uma obra rica, pois permite a trajetória ao complexo interior do ser humano. Cláudio Duffrayer leva-nos a uma viagem profunda e escura da alma.




Meus fantasmas são demônios irados que não posso negar.
(...)
Uma vez mais a coruja me fita de longe, ouvindo meu estertor, mergulhando na escuridão absoluta, batendo suas asas mais puras que a neve, trazendo em seus olhos a noite que escravizo, a noite que acorrento, a noite que provoco e atiço; a noite com que cubro o vazio.
(Rasga-Mortalha, p. 57)



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Título: Noturna e outros poemas
Autor: Cláudio Duffrayer
Editora: Multifoco
Número de Páginas: 58
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Um comentário:

  1. […] o escritor Cláudio Duffrayer e a sua obra Noturna e outros poemas (leia a resenha sobre o livro aqui). Você conseguirá encontrar a obra no site da Editora […]

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