O primeiro beijo, de Clarice Lispector

sábado, 14 de abril de 2012

 Depois de alguns dias de gripe, retomo as atividades aqui no Blog da Literatura. Muita coisa aconteceu durante essa semana e muitas datas importantes foram comemoradas também. Vamos falar sobre elas nos próximos posts. :)


Começo o dia de hoje com um belíssimo conto de uma autora que gosto muito, a Clarice Lispector (em breve farei um post só sobre a obra dela), em homenagem ao Dia do Beijo!! Vocês sabiam que ontem foi o Dia do Beijo? Pois é...




[caption id="" align="aligncenter" width="214" caption="O beijo, de Gustav Klimt"][/caption]

Às vezes eu penso que é até um pouco banal, nos dias de hoje, comemorar isso já que um beijo não possui mais o significado que possuía antes... Tenho a impressão de que as pessoas beijam qualquer um (ou qualquer uma!) sem pensar mais em sentimento... Muitos preferem a quantidade à qualidade. Mesmo assim, acho válido falarmos sobre beijo e, porque não, sobre o primeiro beijo? Sim, o primeiro beijo deve ser algo marcante, algo especial, não acham?




[caption id="" align="aligncenter" width="300" caption="cena do filme "Meu primeiro amor" (My girl), de 1991, com Macaulay Culkin e Anna Chlumsky"][/caption]

Vejam, então, como Clarice Lispector narrou o primeiro beijo de um menino...




[caption id="" align="aligncenter" width="224" caption="a escritora Clarice Lispector (1920 - 1977)"][/caption]

O PRIMEIRO BEIJO


Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:


- Sim, já beijei antes uma mulher.

- Quem era ela? perguntou com dor.

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado.

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

Ele se tornara homem.

(In "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998)




E vocês? Ainda lembram do primeiro beijo?


Espero que tenham gostado do conto (e do beijo!)...


Beijinhos


Ana Karina

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2 comentários:

  1. Clarice Lispector é sempre maravilhosa!
    Hoje em dia não sei, mas os primeiros beijos da nossa geração realmente eram inesquecíveis... pelas diversas questões envolvidas... e, muitas vezes, na verdade, são lembranças engraçadas e divertidas, muito mais que românticas... hehehe
    Mas, enfim... já que a questão é beijo... bora beijar, né?!

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  2. Clarice e perfeita!
    Amo os textos dela.
    Otima escolha.
    Beijos

    @NinaHenker
    http://fleurdylis.blogspot.com

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